12 janeiro 2006

Entrevista com Hugo d'Alte

Mais uma participação portuguesa no Tipograficamente. Dessa vez é o meu caríssimo Hugo d´Alte que nos revela a sua visão pessoal sobre temas que contornam o desenho das letras, e nos mostra as suas mais recentes produções - em primeira mão, já que duas delas ainda não foram lançadas - tipográficas.

Respostas originalmente em português, de Portugal!

TPG - Como foi sua aproximação com a tipografia? Essa matéria foi abordada na ESAD/ Portugal (Escola Superior de Artes e Design)?
HD - Em primeiro lugar gostava de expressar a minha discordância em relação à maneira como o termo "tipografia" é normalmente utilizado. "Tipografia" é a organização de elementos tipográficos no espaço (ou como diz o Gerrit Noordzij: é escrita com letras pré-fabricadas); o nosso assunto é o desenho (não "design" que é um termo inglês) de tipos de letra (a falta de nome melhor).

Na ESAD (Escola Superior de Artes e Design) onde estudei, tivemos uma abordagem muito superficial e bastante ingênua por parte dos professores ao tema do desenho de tipos de letra (menos mal ao tema da tipografia).

Quando estava no último ano do curso de Design de Comunicação fui convidado para trabalhar na DROP (www.drop.pt), um pequeno estúdio de design que trabalha, sobretudo com editoras de música e eventos culturais, trabalhei lá cerca de 2 anos. Na altura trabalhava-mos apenas eu e o João Faria (fundador/ director do estúdio), aprendi bastante com ele. Acho que foi das discussões com o João que desenvolvi o meu interesse pela tipografia e desenho de tipos de letra, e também um certo desconforto no facto de os "designers" (ou desenhadores) gráficos aproveitarem o trabalho de outros "designers" (de tipos de letra) para enriquecer o seu, muitas vezes sem respeito por esse trabalho. Afinal de contas quando desenhamos qualquer objecto de comunicação (cartaz, livro, identidade corporativa, etc.) metade do trabalho já foi feito por quem desenhou o tipo de letra escolhido...

TPG - O que o levou a fazer o Mestrado em "Type & Media" na KABK?
HD - Precisamente esse desconforto a que me refiro na pergunta anterior, a impressão de que a minha formação como "designer" estava incompleta e uma crescente necessidade de aprender mais sobre o assunto. Também achava (e continuo a achar) que um "designer" gráfico com educação em tipografia, caligrafia, desenho de tipos é mais responsável e têm mais potencial.

A determinada altura, comecei a procurar pós-graduações em tipografia/desenho de tipos; em Portugal não havia nada. Procurei noutros países europeus com mais tradição no assunto. O curso que me pareceu mais interessante em conteúdo e do ponto de vista econômico era o da KABK (Koninklijke Academie van Beeldende Kunsten - Academia Real de Belas Artes) em Haia na Holanda, na altura não se chamava "Type & Media", era Pós-Graduação em Tipografia e Desenho de Tipos de Letra.

Estive lá dois anos (embora a duração do curso seja normalmente de apenas um) porque queria aprender o máximo que conseguisse. Foi no meio do segundo ano que decidiram mudar o nome para "Type & Media".

TPG - Você fez vários workshops em tipografia. Qual foi a importância disso no seu trabalho como tipógrafo?
HD -
Durante a estadia na Holanda participei de vários workshops e palestras sobre os mais variados assuntos: tipografia, caligrafia, gravação de letras em pedra, "lettering", desenho de tipos de letra. Todos eles foram fundamentais na minha educação. Na metodologia, na maneira de pensar no trabalho, na maneira de desenhar as letras.

TPG - Como surgiu a oportunidade de ser colaborador da Underware? Fale sobre essa experiência.
HD -
Os dois membros fundadores da Underware - Akiem Helmling e Bas Jacobs - estudaram na KABK dois anos antes de eu lá chegar, o Sami Kortemäki que se juntou a eles mais tarde também estudou na KABK, durante um programa de intercâmbio.

O estúdio fica nas traseiras da Academia (numa casa ocupada: um “squat”) onde também morava um dos meus colegas de curso. Conhecia-mo-nos bem, éramos todos amigos. A determinada altura convidaram-me para trabalhar com eles no estúdio. Quando me fui embora (brevemente para Portugal e de seguida para a Finlândia onde vivo agora) não vimos necessidade para continuar a colaboração, mas continuamos amigos. O Sami também vive em Helsinki.

TPG - Em que momento surgiu o projeto "Kaas"? Que tipo de busca caracterizou esse projeto?
HD - A Kaas (originalmente Kaasoufléxblack) foi um projecto que começou em Haia ("Kaas" significa queijo em holandês...). Em 2001 visitamos Leipzig, na Alemanha, para o encontro da Atypi (Association Typographique Internationale); eu sempre gostei de "Blackletters" e na Alemanha encontrei muitas fontes de inspiração, muito mais interessantes do que as que se encontram disponíveis na maioria da editoras tipográficas. De volta a Haia comecei a trabalhar em vários projectos relacionados com o tema, um dos quais foi a Kaas. Tenho muitos outros projectos dessa altura por acabar, se calhar mais interessantes.

Apresentei como projecto final de curso uma família tipográfica destinada a ser utilizada em tipografia editorial (ainda por publicar) juntamente com a Kaas que era um projecto secundário ao qual nunca dei demasiada importância. O incentivo para continuar com esse projecto veio do Jonathan Hoefler que me escreveu (pois tinha visto a Kaas no meu website) e que também têm um interesse especial em "Blackletters".

Fiz alguma pesquisa histórica, visitei muitos antiquários em busca de livros/revistas (sobretudo alemãs dos anos 30-40). Encontrei coisas incríveis, muito inspiradoras. Comecei, no entanto por escrever em "textura" e "fraktur" para compreender as complicadas formas, depois tentei racionalizar, simplificar. E daí nasceu a Kaas.

TPG - A "Kaas" é distribuída pela Thirstype/Village. Como surgiu o convite para ter sua fonte editada por esse coletivo?
HD - Contactei várias editoras pequenas com a proposta de distribuição da Kaas, várias se mostraram interessadas, mas o Chester da Village (a Thirstype é uma marca pertencente a Village) para além de entusiasmado fez uma contra-proposta de ampliar o tipo que me pareceu interessante, redesenhei a Kaas, adicionei muitos caracteres que faltavam, e trabalhamos juntos nas versões Cirílica e Hebraica (que embora não tenham relação com a fonte inspiradora da Kaas, pareceram-nos uma continuação natural para a Kaas.

TPG - Conte sobre sua experiência como palestrante no congresso da ATypI 2005?
HD -
Fui convidado pela organização finlandesa da Atypi-Helsinki 2005 a apresentar uma proposta para falar durante a conferência em Setembro de 2005. O tema era "On the Edge" (alusivo ao facto da Finlândia ser geográfica e culturalmente uma fronteira da Europa a norte e a oeste).

Pareceu-me muito natural falar do meu trabalho e pesquisa nas "Blackletters". O tema foi "Blackletter: On the Edge of Legibility", no limite da legibilidade, porque estes tipos de letra são difíceis de ler e muitas vezes indecifráveis para o leitor actual. Isto porque este tipo de "script" deixou de ser utilizado há uns 500 anos por quase toda gente excepto a Alemanha que até aos anos 40 ainda imprimia livros inteiros em Fraktur, Textura, Schwabacher... Alguns caracteres evoluíram, modificaram-se. Por isso quando desenhamos algo novo é necessário "romanizar" alguns caracteres ou corremos o risco de desenhar um tipo de letra sem utilidade... Durante a minha palestra mostrei a evolução histórica das "blackletters" e a influencia no meu trabalho.

Em relação ao resto da conferência, foi talvez a melhor organizada de todas as conferências da Atypi em que tive a oportunidade de assistir, embora não tenha sido a mais interessante em termos de conteúdo. Foi também a que teve mais assistência lusófona!

TPG - Qual a sua visão pessoal sobre o mercado tipográfico?
HD -
O mercado tipográfico está bastante saturado, existem muitos tipos de pouca qualidade e muitos mais que são completamente desnecessários. A evolução e facilidade de distribuição de software para assistir o designer tipográfico transformam ilusoriamente toda gente em designers tipográficos sem a educação necessária... O que em si não é problema, mas desvaloriza o trabalho dos designers tipográficos e dá a falsa impressão aos consumidores de tipos de letra de que qualquer pessoa o faz facilmente em casa, o que não é verdade; e retira o valor aos que trabalham seriamente em tipos de letra e dependem das vendas para sobreviver...

Acho que se devia refinar de alguma maneira o mercado. Também acho que faz falta esclarecer/educar toda gente desde a mais tenra idade na natureza das letras, a origem... Os designers são menosprezados porque a maior parte das pessoas não é sensível aos diferentes tipos de letra e parte do principio que estas sempre existiram... Ninguém se lembrará que foram desenhadas e produzidas por alguém e que há muitas horas, meses, anos de trabalho envolvido.

TPG - Você está envolvido com algum novo projeto? Quais são seus planos para o futuro em relação à XBOLD?
HD -
Tenho muitos projectos para terminar, alguns a começar e alguns que ainda não comecei por falta de tempo...
Gostava de terminar alguns dos meus outros projectos de "Blackletters". Estou a acabar a família tipográfica "Kampen" (para tipografia editorial) que comecei em Haia e que deverá ser distribuída no futuro também pela Village, é uma família extensa com versão serifada e não serifada.

Comecei recentemente o primeiro de alguns projectos de recuperação de tipos antigos (será arqueologia tipográfica?), estou a digitalizar um tipo de letra que encontrei num livro português de 1797, impresso numa "Typografia Rollandiana" em Lisboa. É um tipo barroco (possivelmente mais antigo que a data de impressão do livro), e têm curiosidades, sobretudo á nível de diacríticos.

Tenho também em minha posse um livro impresso em Amsterdam datado de 1690 cujo tipo utilizado foi identificado pelo designer holandês Fred Smeijers (meu ex-professor) como sendo de Pierre Hautain, um francês que trabalhou nos países baixos no séc. 16 e de quem ele fala no seu livro: Counterpunch. Um futuro projecto será recuperar esse tipo de letra - tanto quanto sei não existem versões digitais dos tipos do Pierre Hautain.

TPG - Em 2006 a ATypI estará em Portugal. Quais as suas expectativas para esse evento?
HD - Espero que faça sair mais designers portugueses/lusófonos - não faço idéia se há alguém na África lusófona envolvido no desenho de tipos - do anonimato, seria uma boa oportunidade de criar colaborações entre designers lusófonos (já que na ortografia não há entendimentos) para defesa e desenvolvimento da língua escrita, discussão de problemas específicos da língua, etc.

Por exemplo: há uma medida antiga de medida de vinho e azeite utilizada em Portugal e Espanha chamada "Arroba" cujo símbolo é muito semelhante ao do "@", ora existem muitos desenhos contemporâneos cujo "@" é representado pelo símbolo da "arroba" e o nome "arroba" é utilizado geralmente para descrever um "@"...

Podia-se também - e isto faz muita falta - fazer uma compilação de termos utilizados no design e na tipografia em português e fazer um dicionário tipográfico, por exemplo. O Brasil está mais adiantado, a indústria editorial é maior, pode editar livros considerados pelas editoras como "de risco", como livros sobre tipos/tipografia (refiro-me a edição brasileira do "Elements of typographic Style”), mas não deixa de ser uma tradução de um livro estrangeiro e terminologia inglesa.

Há muito trabalho para fazer e esta é uma oportunidade para discutir idéias, espero que não passe ao lado dos designers portugueses, brasileiros, da África lusófona, e que seja mais um encontro das mesmas pessoas que geralmente estão presentes nas conferências da Atypi e que vêm para passar umas férias ao sol e ver amigos e colegas (o que acontece geralmente...).

E claro, colocar os designers portugueses em destaque, mostrar o que se faz em Portugal.

TPG - Como você observa o cenário tipográfico em Portugal? Você acredita que economicamente, a tipografia pode ser viável em países com pouca tradição tipográfica, como o Brasil e Portugal, por exemplo?
HD - Em Portugal os designers são mal pagos (ou pior pagos que no norte da Europa, por exemplo) e pouco respeitados.

Os designers tipográficos estão em ainda pior posição porque a sensibilidade para o assunto é muito pouca por parte da maioria dos clientes. Não é que nos outros países isso não aconteça, mas há uma abertura maior a idéias como, por exemplo: integrar um tipo de letra numa identidade corporativa (e ser pago por isso...)

Para a situação mudar é preciso mudar a maneira como as pessoas são educadas, desde a educação visual até a aprendizagem da escrita. Só quando se criar uma consciência critica destes assuntos no público em geral e um reconhecimento do trabalho envolvido, podemos realmente começar a ser pagos e reconhecidos pelo nosso devido valor (ou o valor do trabalho).

TPG - Palavras Finais.
HD - Apenas gostava de chamar a atenção ao potencial dos 250 milhões de pessoas que fala português (quase 190 milhões só no Brasil), e ao mercado enorme existente no mundo lusófono. Em vez de nos anglo-saxofonizarmos, podíamos unir esforços e pressionar no sentido de melhorar a língua escrita, exigir literatura especializada em português (ou cria-la).

E outros problemas de que falo nas respostas anteriores. É uma idéia que podia ser explorar em Lisboa este ano.


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